Desaparecimento do Coronel Fawcett pode ter sido criação esotérica dos “anos 80” para atrair místicos

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Ricardo Rogers Mendonça Manciolli

Por décadas, a figura do lendário coronel britânico Percy Harrison Fawcett esteve envolta em mistério, sendo associada à enigmática Serra do Roncador e à cidade de Barra do Garças. Documentários, podcasts e até obras acadêmicas mantêm viva a narrativa de que o explorador teria desaparecido na região na década de 1920, supostamente em busca da mítica “Cidade Z”. No entanto, uma nova investigação histórica sugere que essa conexão nunca existiu — e que tudo não passa de uma narrativa criada nos anos 80 por uma seita esotérica.

De acordo com pesquisadores independentes e documentos levantados ao longo de anos, a origem do mito remonta à década de 70 e 80, quando um estrangeiro vinculado à Sociedade Brasileira de Eubiose abandonou a organização e fundou, em Barra do Garças, o chamado Monastério Teúrgico do Roncador. Esse líder, que se autoproclamava “Hierofante“, teria sido o responsável por inserir Fawcett na história da região, com o intuito de atrair místicos, curiosos e esotéricos ao local. (Segundo pesquisadores).

Para reforçar sua nova doutrina e elevar a importância mística da Serra do Roncador, o líder esotérico difundiu a ideia de que Fawcett teria se perdido na Serra do Roncador entre Barra do Garças e Nova Xavantina, desaparecido junto ao filho durante uma expedição em busca de uma civilização oculta.

No entanto, à época do suposto desaparecimento, na década de 1920, não havia estradas ligando Barra do Garças a Nova Xavantina, muito menos porto de embarcação ou estação ferroviária. Nem qualquer infraestrutura que permitisse o acesso, por parte de estrangeiros, à região, mesmo montados a cavalo.

A Fundação Brasil Central ainda não existia e a famosa Expedição Roncador-Xingu, liderada por Orlando Villas Bôas, só ocorreria anos depois. Historicamente, não há registros consistentes que coloquem Fawcett na Serra do Roncador.

O suposto “Hierofante“, mentor da narrativa esotérica, faleceu tragicamente em um acidente próximo ao município de Bom Jardim (GO). Após sua morte, a história permaneceu circulando no imaginário popular, alimentando o turismo místico e servindo como pano de fundo para livros, filmes e programas de televisão — por duas vezes foi tema do Globo Repórter e do programa ” Mistérios” da extinta TV Manchete.

Em uma entrevista esclarecedora, conversamos com Deborah Lavorato Leme, Mestre em História Social pela USP e pesquisadora sobre a trajetória do explorador inglês Percy Harrison Fawcett no Brasil.

Professora Deborah Lavorato Lemequem foi Percy Fawcett?

– Percy Harrison Fawcett foi um famoso explorador, topógrafo, oficial do exército inglês, ocultista e arqueólogo amador. Ele nasceu em 31 de agosto de 1867 em Torquay, cidade litorânea no sul da Inglaterra e desapareceu no Brasil em 1925, aos 58 anos de idade. Era filho de Myra Elizabeth MacDougall e do capitão Edward Boyd Fawcett, oficial do exército britânico nascido na Índia. P. H. Fawcett seguiu os passos do pai e optou pela careira militar, tornando-se oficial de artilharia aos 19 anos, quando foi enviado ao Ceilão. Foi lá que ele conheceu e se casou com Nina Agnes Paterson, filha de um magistrado local, com quem teve três filhos: Jack (1903-19??), Brian (1906-1984) e Joan (1910-2005). Ele veio para a América do Sul pela primeira vez em 1906, quando aceitou o convite da Royal Geographical Society (RGS) para se juntar à chamada Comissão Mixta [sic] de mapeamento da fronteira entre o Brasil e a Bolívia. Além de militar bem-sucedido, Fawcett foi reconhecido ainda em vida como um ótimo topógrafo e um estudioso do ocultismo, o que acabou por contribuir para a construção de uma certa aura mística e supersticiosa em torno de sua figura. Seu círculo de amigos contava com algumas figuras proeminentes da cena literária britânica do final do século XIX e começo do XX como, por exemplo, os escritores Henry Rider Haggard (1856-1925) e Arthur Conan Doyle (1859-1930), conhecidos por serem os criadores dos icônicos personagens Allan Quatermain e Sherlock Holmes respectivamente, personagens que marcaram a cultura e o imaginário da Era Vitoriana.

  • Como foi a última expedição dele no Brasil?

– A última expedição de Fawcett começa em meados de 1924, quando em maio desse ano ele vai à Londres (a família morava em Stoke Canon, em Devon) para angariar fundos para o financiamento da expedição. Sem obter muitos resultados em Londres, Fawcett vai para Nova York com o mesmo objetivo: conseguir dinheiro. Lá ele faz um acordo com a NANA – North American Newspaper Alliance (NANA), um conglomerado de jornais estadunidenses que aceita patrocinar a empreitada de Fawcett exigindo, em contrapartida, que ele lhes enviasse em primeira mão todo e qualquer avanço ou descoberta realizados pela expedição. Com o patrocínio da NANA Fawcett segue de navio para o Rio de Janeiro. Do Rio seguem para São Paulo, onde visitam o Instituto Butantan e conseguem soro antiofídico para picadas de cobra. De lá o grupo vai para Cuiabá, capital do Mato Grosso e depois seguem em direção a região que futuramente abrigaria o Parque Nacional Indígena do Xingu. É nessa vasta região que Fawcett teria desaparecido. No interior do Mato Grosso o trio estava à procura de resquícios de uma cidade perdida originária de Atlântida, uma ilha descrita pela primeira vez na literatura ocidental por volta do ano 355 a.C.6 pelo filósofo Platão em seu diálogo Timeu-Crítias. É a essa cidade perdida – cujos habitantes seriam descendentes diretos dos atlantes – que Fawcett procurava e cuja descoberta ele considerava “a resposta para o enigma da América do Sul Antiga”. Ele chamou essa cidade de “Z”. Entre 1906 e 1925 Fawcett realizou sete expedições à América do Sul, nas quais percorreu os territórios da Bolívia, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile, Peru e Brasil. Mesmo que o objetivo de todas essas expedições não fosse encontrar Z, Fawcett sempre dava um jeito de procurar pistas sobre a localização da cidade perdida e reunir informações que corroborassem suas teorias.

  • Coronel Fawcett passou por Barra do Garças?

-Durante meus estudos não encontrei nenhuma referência a passagem de Fawcett pela região de Barra do Garças, sei que há uma estátua do explorador na cidade, mas acredito que essa associação entre ele e a cidade deva-se ao misticismo e a questão esotérica que a cidade abraça por conta da Serra do Roncador. Os registros de Fawcett indicam que ele percorreu mais a região de Cuiabá, indo mais ao norte, até o atual Parque do Xingu.

  • Percy Fawcett andou pela Serra do Roncador?

– Durante meus estudos também não encontrei nenhuma referência a passagem de Fawcett pela Serra do Roncador, mas não descarto essa possibilidade, pois os registros de Fawcett são um tanto caóticos, em muitos casos ele não determina com exatidão a rota que percorreu nem as datas em que passou por determinados locais. Lembro de ter lido alguma teoria da conspiração sobre a possibilidade da cidade perdida de Z – pela qual Fawcett procurava – ter algum tipo de comunicação subterrânea com a Serra do Roncador, como se fosse possível acessá-la por algum portal escondido no Roncador. Fora isso, não me lembro de nenhuma outra ligação de Fawcett com a Serra do Roncador.

Quais as prováveis causas do desaparecimento de Fawcett?

-O único consenso sobre o desaparecimento de Fawcett é que ele sumiu na companhia do filho mais velho, Jack Fawcett, e de um amigo do filho, chamado Raleigh Rimmel, em maio de 1925, na região do atual estado do Mato Grosso. O corpo dele e dos demais membros da expedição nunca foram encontrados, embora ao longo do tempo tenham surgido teorias como a do “esqueleto na Lagoa Verde”, muito bem documentada pelo jornalista Antonio Callado no livro homônimo de 1953. Nesse livro-reportagem, Callado expõe brilhantemente a história do descobrimento da ossada na comunidade Calapalo em 1951 pelos irmãos Villas Boas, que sabemos não pertencer nem a Fawcett nem a nenhum de seus companheiros de viagem. Dessa forma, o desaparecimento de Fawcett e seus companheiros permanece um mistério, sendo as causas mais prováveis a morte por inanição, em decorrência de doenças e ferimentos, ataque de animais ou de indígenas, mas sem evidências concretas não há como termos certeza do que realmente ocorreu. Alguns grupos, como a Sociedade Brasileira de Eubiose, seguem acreditando na possibilidade de Fawcett e seu filho Jack terem encontrado a cidade perdida de Z na Serra do Roncador, onde ambos teriam liderado uma comunidade esotérica.

Deborah Lavorato Leme:

Bacharel (2018) e licenciada (2021) em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, mestre em ciências (2023) pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da mesma faculdade e especialista em ensino a distância (2023) pela UNIVESP. Pesquisa a trajetória do explorador inglês Percy Harrison Fawcett no Brasil durante a República Velha, suas expedições de demarcação de fronteira realizadas no Brasil, no Peru e na Bolívia, além da repercussão de seu desaparecimento.

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